Poema do Príncipe e outros poemas
Elisa Marchini Sayeg
Poemas selecionados
De: Dezembro: frutos secos. páginas 65 a 80.
São 14 "baladas" e três poemas. As baladas têm como tema o tempo, a natureza, a finitude, a metalinguagem e um discreto humor, dentre outros.
Poema do Príncipe (poema que foge)
1. BALADA DO MAIS JOVEM
Puro, antes dos homens.
Ele é o mais jovem da aldeia.
Isso significa que não tem que encarar ninguém,
Ter tomado um banho branco,
Ter mergulhado atrás da moeda que esconde a Hora,
Onde ela não tem face.
Parvo. Sem um espelho para encarar-se.
Limpa obsessivamente,
Com a beira da camisa,
O círculo de metal opaco.
Moeda de latão. Chumbo grosso.
E, enfim, tem um espelho lustroso onde se mirar.
Um certo tipo de espelho.
Afinal, isto não se parece com uma balada.
E então: tchantchantchantchan:
Vai o que se segue;
Se segue:
2. BALADA DESABALADA
Chega uma hora que a hora troca os pés,
Escorrega na pista de óleo do relógio.
Escorrega onde as engrenagens se amontoam
até o mínimo,
E passa.
Uma hora em que esse óleo desliza
Pelas madeiras,
E o relógio parece suar,
Parece ter tomado chuva,
Parece sangrar.
Em que esse óleo molha o sofá,
Suja o tapete,
Borra a tinta.
Lava o poema.
Em que esse óleo se torna um estorvo
Em que outros escorregam.
Em que melam as mãos
e ficam entreolhos,
sem álibi.
E chega uma hora em que essa hora passa.
3. BALADA DO BURRO QUANTO FOGE
O burro quando forja
Uma curva arriscada
Nas suas inúmeras escapadelas
Pelas encruzilhadas
Se esquece das manchas
De fogo na sua pele
Feitas pelo deus Vaqueiro
E esquece do argueiro
No olho do outro fogo
E esquece o pegureiro
e o tugúrio
E os poemas de palavrões intermináveis
Do romântico corvo agoureiro
Pousado no seu dedão.
CRIAÇÃO
No princípio deus era um palavrão
Quando o palavrão bateu no barro
Deu com os burros n'água.
4. BALADA DO VENTO QUANDO CHOVE
O vento arranha as costas
Nas facas da chuva
E chora.
Estica as mãos estufadas
de vento, ineptas
para o trabalho
E luta com a chuva por causa da faca,
E chora.
Invade os pulmões de vento
Com vento completamente
E diz palavras do fundo do pulmão,
do fundo do coração de vento.
E uiva
palavras de vento com sentido turbilhonado.
E parece uma máquina funcionando,
um motor rugindo,
Mas uiva sem saber que dor,
E funciona com metal de vento,
E nem se lembra por que luta,
Por que faca de lâmina,
Quando a chuva cessa.
5. BALADA DO BADALO ENFERRUJADO
O badalo se cobre de ouro
paciente.
A umidade da chuva
aperta as coisas.
O badalo pende,
pesado. O ouro lento
o corrói.
A chuva abafa,
marcando monótona,
a música de glória
Quando chega a hora.
A chuva é sempre.
Como uma nuvem murcha:
derrete constante.
A Hora, de corpo de metal,
Quando esbarra na próxima
Já não faz blém
que se ouça.
A Hora segue a Hora,
robô de metal, novinho em folha.
Caem.
A chuva chove no ouvido.
O badalo se cobre
de ouro resignado.
É isso: a alegria
o corrói.
E quando soa a hora da glória
Os Ouvidos cadenciados
Não alcançam os acordes da glória.
6. BALADA DO SINO QUANDO SUJA
O sino suja a garganta
Com estilhaços da hora
Quando as hora longe vão
E já são mudas,
E já são brancas
Cai um cisco no olho do sino,
paralítico há muitas horas,
E arranha a garganta.
Quando as horas são um ponto lá longe,
Já longe da música de origem.
*
O sino suja a sarjeta
Com estilhaços das horas,
musicais,
Afogando mudos na água da chuva
que corre, da torre
Até a sarjeta.
7. BALADA DO RELÓGIO QUANDO BADALA
Entre todas as coisas da dosordem
Meio perdido.
Que lhe achem uma ocupaçao.
Enquanto isso os ponteiros são bigodes,
Austeridade para o Nada.
E que olho olha isso tudo?
As janelas são janelas,
abertas para outras coisas,
fechadas para os outros.
Brinquedos são brinquedos,
Rodas, alfinetes
Espalham-se pelo quarto.
Mas enquanto ninguém se lembre
De laçar todos os nomes
Por aí como borboletas,
Talvez ainda o confundam
Com a paisagem ou outro belíssimo corpo.
*
Cada número fosforescente
Brilha como hora no escuro.
Mas talvez eles se esqueçam.
Talvez lhes escape cda número,
Como ilusão de ótica.
Cada revolucionário, cada ideia clara,
Sem que um tiro de canhão estoure,
Procura um canto de escuro
Para aquecer-se.
Ser escuro por uma noite.
Mas, ó comoção!
Que mola perdida
Que indignação distraída
Lembrou-se de ranger
As horas?
Balada do relógio quando badala.
8. BALADA DA BADALADA
Quando se erguem
Coisas uma atrás da outra
As casas que as horas
semierguem
abandonam
E por cima dos telhados espreita
um olhar que se fecha
O sol vai embora
E o galo do catavento
Gira no vácuo quente
E não canta
Então as coisas algazarram
Como araras
Gritando arapongas
e outros assuntos
Afastando-se muito do sentido original
Da conversação.
9. BALADA DO BADALO DO CARRILHÃO
A horda das horas
Todas escravas
Seguem cantando
Como um batalhão
Rufam tambores,
Caminham elefantes,
Estouram os sinos
Caindo no chão.
A aldeia, de vidro,
Os telhados, de palha,
O porão, de algodão,
Tudo pega fogo
E racha várias vezes.
O próprio Céu azul
Olha hipnotizado
A maldição do pêndulo:
Não é mais que um reflexo
De lá, pra cá.
10. BALADA DO NABABO
O cavaleiro andante das horas,
lança em riste,
espeta o triste, triste, triste ...
O Triste esconde atrás da rocha,
Sem rosto, sem nome.
Mais pra frente no relvado
O cavalo troca as patas,
E dança.
Quase cai. Mas não.
Depois de muito pensar
Cada orvalho violeta
É um duende em declive.
11. BALADA DO NABO
Alimentar-se de raiz.
Tinha uns, uns,
Que cavocavam a terra,
Passavam a vida fazendo isso,
buracos.
Tinha uns, uns,
Que viviam dentro deles,
Com dentes pontiagudos.
Tinha uns, uns,
Que esperavam o luar,
E sabiam, porque ouviam
O sapatear dos duendes
No teto.
Tinha uns, uns,
Que faziam do meu jardim
Numa toca assim,
E mordiam a vida por baixo.
12. BALADA DA BALADA
A tarde veio
Calá-lo,
suave.
A tarde foi um banho
Foi para não explicar.
Com a enorme face noturna
Aproximava-se o Cri-Cri.
Ele teve medo,
mas não cuidado.
Arrastando a bainha de sombra
Ela aproximava-se,
Vestida enormemente.
Passo a passo, soava
um badalo.
Na longa torre pontuda
Da distância
Ficou a tarde espetada
E o sino abriu o berreiro.
Morria.
13. BALADA BALEADA
Balada não aliterada.
A folha do caderno voa em branco
Arrancada pelo vento com a faca.
Um destino em branco
Escrito, e acrescido, com o rasgo.
E fica preso numa linha imaginária
Do desenho no olho da paisagem.
Balada ilírica
Demasiado sensível para não ser dura
Subindo a
escada-de-ponta-cabeça
e evitando a televisão de boca escancarada
ouvindo as fofocas de ninguém em particular.
Todos os grandes amores são genéricos.
Quase platônicos.
Quase exemplares.
E aprendemos.
Balada não adianta.
Escorrega como um cão sarnento
Tirando finas da parede do vento.
Balada chumbada.
14. BALADA BALANCEADA
9,475
incandescentes.
As datas se quebram
Dividem
Partilham.
As datas são a vindima.
A colheita se fará dentro em pouco.
Talvez.
E soarão sa trombetas.
E soarão
Que parecerá que o mundo está acabando.
As datas se quebram
Em cometas decadentes
a procura de um buraco na Terra
Em obuses das datas de guerra
... de um buraco num coração.
* FIM *
Três poemas:
TRISTOS DO CAMINHO
Seguem os tristos
em procissão
pelo caminho.
Seguem, e não se demoram.
Seguem, e não se voltam.
E já se foram,
Pelo tapete
do sol sangrento
do poente.
As sombras afundam
na terra, sobre a erva
seca
e os trigos danificados,
sem vento,
estacam. Seguem,
e não se voltam.
CANTIGA DO LADRÃO DE ESTRADA
para ninar rouxinóis
Nós somos os ladrões de estrada.
Viemos de muito longe
Vamos para lugar nenhum.
Nesta noite dormirei a esta sombra
Desta árvore
E farei sopa de pedras.
Nós somos os ladrões de séculos,
De pós, os ladrões de livros.
Nós somos os árabes.
Deste punhado farei
Sopa de pedras.
Nós somos os ladrões bizarros,
Viemos de lugar nenhum,
Vamos para muito longe.
Somos ladrões de Bizâncio.
Tiramos cinza e sarro,
E deste punhado de areia vermelha,
Sopa de pedras.
Nõs somos os ladrões de sonhos,
País de grades de açúcar,
Polícias de sal.
Atrás se põe o sol
Na ponta da estrada.
Na outra ponta ela segue
Para um país sem música.
Por hora ficamos na beira.
Cochilaremos sob a árvore
E antes que a terceira maçã caia
Estaremos de pé.
Nós somos os ladrões de estrada,
Por nós os bares ficam lotados.
A luz do sol pondo sopra nossa vela
E vamos para o país de sombra
Na ponta muda da estrada.
Nós somos os ladrões desta era,
Não da vinda nem daquela,
Não da outra ou da próxima.
Não da era que é esfera,
Ou ponto ou linha.
Mas da que para à beira da estrada
E fica ao pé da árvore-árvore.
VISITA
Santa Alva trazia no peito
Um mártir de flores bordadas.
O veículo da noite a trazia
Da estrela fosforescente.
De repente voltava a brilhar
O coágulo precioso do peito.
Como sopram na primavera
Os perfumes do campo.
...
Elisa Marchini Sayeg
Dezembro: frutos secos.
São Paulo: Scortecci, 1991.
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